Desde os tempos imemoriais que o elemento
estruturante das bibliotecas foi o livro. Os edifícios e as coleções, os
serviços e as atividades, o papel e o estatuto dos bibliotecários. Tudo
era pensado em função do livro. Todavia, o surgimento da internet e dos
novos media veio colocar em causa essa ordem natural das coisas. Surge a
pergunta: Atualmente, qual é o elemento estruturante das bibliotecas?
Muitos dirão: a tecnologia. Não me integro nesta corrente de opinião.
Considero que o elemento estruturante das bibliotecas é o ser humano.
Defendo as bibliotecas à escala humana. Num artigo de 1998, Designing
libraries round human beings Maurice B. Line desenvolve esta tese de
forma magistral. Confesso que foi um dos textos que mais contribuiu para
moldar a minha forma de pensar e de fazer as bibliotecas públicas.
Na prática, que implicações tem esta tese na forma como organizamos as
nossas bibliotecas? Gostava de deixar aqui algumas pistas para reflexão e
discussão:
1. Tornar os espaços das bibliotecas mais agradáveis e acolhedores
No nosso imaginário coletivo as bibliotecas surgem como edifícios
monumentais cuja escala arquitetónica facilita a sua afirmação no tecido
urbano e cuja dimensão simbólica é a de um templo do conhecimento. A
biblioteca é projetada de fora para dentro. Isto é tão verdadeiro para a
New York Public Library (1895) como para a Seattle Public Library
(2004).
Desenhar as bibliotecas à escala humana implica pensá-las
de dentro para fora. Antes de mais interessa que as pessoas se sintam
bem nelas, como se sentem bem em suas casas. Para isso o ambiente tem
que ser informal e acolhedor, o mobiliário tem que ser funcional mas
confortável, o atendimento tem que ser profissional mas caloroso, a
experiência tem que ser agradável e enriquecedora.
Os espaços
devem ser organizados tendo em atenção as necessidades das diferentes
faixas etárias (crianças, jovens, adultos, seniores), dos diferentes
tipos de utilização (leitura silenciosa, trabalho de grupo, animação da
leitura, etc.) e dos diferentes serviços prestados (consulta local,
empréstimo domiciliário, formação de utilizadores, acesso internet,
etc.). A biblioteca da criança não é a mesma que a biblioteca do sénior,
a biblioteca de quem faz uma pesquisa na internet não é a mesma
biblioteca de quem vem assistir a uma sessão de contos. Conjugar tudo
isto num único lugar é a maior virtude e a maior fragilidade das
bibliotecas.
2. Partir da identificação das necessidades das pessoas para criar serviços
Os bibliotecários, ao longo dos tempos, têm presumido saber quais são
as necessidades, interesses e gostos dos seus públicos. Muitas das vezes
replicam aquilo que vem nos manuais de biblioteconomia ou partem de uma
abordagem baseada nas suas convicções pessoais.
Criar
bibliotecas à escala humana implica que as pessoas sejam consultadas
antes de se desenhar e implementar um novo serviço que pretenda
satisfazer as suas necessidades. Essa consulta pode ser feita de forma
regular (através de formulários de sugestões), de forma pontual (estudo
de mercado ou inquérito de satisfação) ou de uma forma estruturante
(veja-se o exemplo da Urban Mediaspace Aarhus).
Se adotássemos
esta abordagem iríamos, bem provavelmente, chegar a conclusões
interessantes: alguns serviços que consideramos vitais não são
valorizados pelos nossos usuários (por exemplo: serviço de referência
bibliográfica); grande parte dos nossos recursos estratégicos são
desperdiçados em serviços que não acrescentam valor aos nossos usuários;
muitos serviços inovadores seriam resposta a necessidades banais dos
nossos usuários (por exemplo: apoio à pesquisa na internet). Em última
instância deveríamos adotar a máxima: bibliotecas para as pessoas
(centradas nas suas necessidades) e com as pessoas (modelo de gestão
participada).
3. Escolher os livros que as pessoas efetivamente querem ler
Tradicionalmente, as bibliotecas são coleções de livros. Coleções escolhidas, organizadas e promovidas segundo critérios previamente escolhidos. Mas podemos questionar: Que livros devem ter as bibliotecas? Quais os critérios para a sua escolha? Quais os critérios para a sua organização? Quais os critérios para sua promoção? Para responder a estas questões podemos colocar-nos em dois pontos de vista opostos e, por vezes, inconciliáveis: o do bibliotecário; o do usuário.
Do ponto de vista do bibliotecário, as bibliotecas devem ter uma
coleção just-in-case, escolhida segundo critérios de qualidade,
diversidade e pluralidade. A sua organização obedece a classificações
biblioteconómicas que pretendem decalcar as taxonomias do conhecimento. A
objetividade e estabilidade são as características mais apreciadas
deste modelo de organização. A promoção, quando existe, é feita numa
lógica expositiva pondo em evidência grandes efemérides ou temas
sabiamente escolhidos pelos bibliotecários. É uma biblioteca construída a
pensar em todos os hipotéticos leitores que um dia vão entrar pela
porta dentro à procura de um livro com um título impronunciável de um
autor completamente desconhecido.
Do ponto de vista do usuário,
as bibliotecas devem ter uma coleção just-in-time, escolhida segundo
critérios de novidade, atualidade e atratividade. A sua organização
obedece a centros de interesse que decalcam as apetências e gostos dos
usuários. A simplicidade e flexibilidade são as características mais
apreciadas deste modelo de organização. A promoção, considerada
indispensável, é determinante para estabelecer uma relação entre a
procura dos usuários e a oferta da biblioteca. É uma biblioteca
construída a pensar numa grande diversidade de tipologias de leitores
(leitores de literatura, leitores de novidades, leituras ecléticos,
leitores de género, etc.) e que procura responder a todas elas.
Numa biblioteca à escala humana, os livros existentes são livros os
leitores gostam de ler e não os livros que os bibliotecários acham que
devem ser lidos. Todavia, esta biblioteca tem que ser construída no
mínimo dominador comum, num meio caminho entre ambos os pontos de vista,
entre o arquivo e a livraria.
4. Substituir a promoção da leitura pelo desenvolvimento do leitor
Perversamente a palavra promoção tem um duplo sentido: promover no
sentido de elevar o estatuto; promover no sentido de impingir algo.
Muitas vezes, a promoção da leitura parte erradamente do pressuposto de
que alguém (mediador, professor, escritor, etc.) sabe o que é uma boa
leitura / bom livro e decide impingir essa leitura junto a um potencial
leitor. É uma ditadura do gosto baseada no cânon literário.
Numa biblioteca à escala humana, o processo tem que estar centrado no leitor. Promover adquire o sentido de elevar o estatuto. Primeiro há que identificar o perfil do leitor (competências leitores, gostos pessoais, histórico de leituras, etc.) para depois identificar os livros que melhor podem proporcionar uma boa experiência de leitura. Não existem bons / maus livros, não existem boas / más leituras. Todavia, existe um reverso negativo para esta moeda, o desenvolvimento do leitor só existe se for proporcionada uma diversidade de escolhas de leitura e uma ampliação das competências leitoras. Caso contrário haverá um nivelamento por baixo, levando a um outro tipo de ditadura do gosto, que é ditada pelas modas consumistas do escritor que está na berra ou do livro que está no top.
5. Assumir que a tecnologia é um meio e não um fim em si mesmo
A tecnologia adquiriu um estatuto de divindade: é onipresente,
onisciente e onipotente. Os futurologistas defendem mesmo que a
tecnologia (computacional ou robótica) irá substituir o ser humano, num
cenário apocalíptico de extinção abrupta.
Bibliotecas sem livros, bibliotecas desmaterializadas, bibliotecas
virtuais, biblioteca de babel, são as metáforas que usamos para
estabelecer o paralelismo. Num cenário apocalíptico a tecnologia iria
mesmo extinguir o leitor e a necessidade da leitura. O multimédia
digital substituirá o texto impresso; o utilizador substituirá o leitor;
o ruído substituirá o silêncio; o superficial e efémero substituirá o
profundo e resiliente. Não estará longe o dia em que uma qualquer
empresa de tecnologia irá produzir um interface que ligará o nosso
cérebro diretamente à internet, permitindo-nos aceder instantaneamente a
todo o conhecimento humano. Viveremos a entropia imaginada no Matrix.
Até lá, nas bibliotecas à escala humana, tentemos utilizar as
tecnologias como meios e não como fins em si mesmos. As tecnologias são
ferramentas para passar do mundo fechado ao universo infinito. Para
transformar a nossa biblioteca numa instituição hibrida, glocal,
colaborativa, conectada. Para criarmos novas formas de aceder à
informação e ao conhecimento, para facilitarmos e potenciarmos as
aprendizagens ao longo da vida, para criarmos serviços e atividades
inovadoras que acrescentem valor aos indivíduos e às comunidades que
servimos.
Recordo que, num mundo dominado instrumentalmente pela
tecnologia, como é o mundo orwelliano de 1984, o livro e a leitura são
elementos que possibilitam uma réstia de esperança, subvertendo os
unanimismos e criando um refúgio para o pensamento livre e para o amor.
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